Reequilíbrio das concessões de infraestrutura

Kleber Luiz Zanchim para o Valor.com.br

O ex­ministro da Fazenda Guido Mantega escreveu no Valor de 19 de dezembro de 2012 o artigo "O primeiro ano da nova matriz econômica". Expôs a decisão do então governo de agir para reduzir a taxa de juros e balizar o câmbio. Os caminhos escolhidos foram desoneração tributária de alguns setores, forte atuação do Banco Central no controle cambial, interferência em preços administrados (energia, por exemplo) e posicionamento do BNDES como o grande impulsionador dos investimentos. Nas palavras do autor: "Temos certeza que essa estratégia será bem sucedida e garantirá um maior e mais sustentável dinamismo de longo prazo para a economia brasileira". Os resultados não foram os esperados.

A "nova matriz econômica" ensejou uma modificação nos fundamentos das concessões de infraestrutura. Transformou­as de empreendimentos privados em negócios de Estado. Este posicionou­se, de um lado, como financiador via BNDES e, de outro, como principal credor dos projetos via recebimento de outorgas. O privado, com expectativa de alocar menos capital próprio, dada a promessa de maciço financiamento público, passou a figurar como um gestor deste financiamento e dos ativos a serem constituídos, tendo o compromisso de extrair valor dos projetos para pagar os empréstimos e as outorgas. Logo, o Estado permaneceu umbilicalmente conectado às concessões em sua dimensão econômico­financeira.

Talvez esse modelo parecesse sustentável em função da crença de que a "nova matriz econômica" garantiria "um maior e mais sustentável dinamismo de longo prazo para a economia brasileira". Traduzindo, a atuação estatal asseguraria, entre outras coisas, o crescimento do Produto Interno Bruto ­ PIB. Essa crença é visível, por exemplo, nos modelos utilizados pelo poder concedente para as concessões aeroportuárias, que previam evolução do PIB em taxas superiores a 3% ao ano até 2043. Ou seja, para o governo, sua nova política influenciaria de forma irresistível o crescimento econômico do país.

Seja por equiparação à força maior, seja por fato do príncipe, por reconhecimento de erro de modelagem, a repactuação é assunto jurídico

Os investimentos em infraestrutura são sensíveis à elasticidade entre PIB e demanda. Oscilações no PIB têm impacto direto no número de usuários dos ativos. Por isso, em diversas concessões brasileiras estabeleceu­se um paradoxo: os contratos atribuíram aos concessionários o risco de demanda de forma indiscriminada, apesar de esta ser muito elástica em relação ao PIB, o qual estaria sob controle de um governo que tinha "certeza" do crescimento da economia ou, no mínimo, de sua capacidade de conduzi­lo de maneira vigorosa

O problema é que ninguém pode suportar risco que não gerencia, em especial se tal risco é manejado por sua contraparte contratual. Pensar o contrário seria chancelar a possibilidade de uma parte, a seu exclusivo critério, fazer certo risco se materializar contra a outra, eliminando a paridade básica dos contratantes em um negócio equilibrado.

Sendo o PIB tema daquela "estratégia de governo", como o privado poderia ser obrigado a absorver toda a queda de demanda resultante da depressão econômica? Não poderia. Se o Estado não estivesse tão atado às concessões sendo, ao mesmo tempo, financiador e credor de outorgas, faria sentido deixar o concessionário por sua conta e risco, como prevê a Lei de Concessões.

Nos últimos anos, porém, o modelo de contratação foi de um gestor de recursos públicos e previu em suas premissas que o PIB cresceria por impulso estatal. A "nova matriz econômica" falhou e o PIB, além de não subir, caiu vertiginosamente, dragando a demanda para níveis críticos.

Configurou­se, portanto, um contexto a impor leitura mais ponderada da matriz de risco das avenças. O Estado fugir agora à sua responsabilidade, legando todas as perdas ao concessionário, não significará respeitar os contratos, mas sim violá­los. Afinal, nos modelos econômico­financeiros das concessões e na "nova matriz econômica" que os orientou o poder público tinha "certeza" do crescimento do PIB. Por mais conservadoras que pudessem ser as propostas, nenhum concorrente simplesmente desprezaria os enunciados do governo. Os leilões aconteceram nessas bases. A economia foi destruída. Os contratos devem ser reequilibrados.

Trata-­se aqui de algo desconectado da capacidade gerencial do particular e vinculado a uma política macroeconômica definida pelo então governo. Se o número de usuários dos ativos tivesse diminuído por conta de má gestão destes, os prejuízos seriam mesmo dos concessionários. Queda extraordinária do PIB e falência de toda uma tese macroeconômica são eventos de natureza bem diferente. São como fatos de um príncipe que gerou esperança em seus súditos e, depois, deixou­os à deriva.

Se o Estado não assumir suas responsabilidades e ajustar as outorgas dos projetos de infraestrutura à atual capacidade de pagamentos destes, a herança da "nova matriz econômica" terá consequências ainda mais imprevisíveis e incalculáveis, na dicção da Lei de Licitações. Os riscos alocados aos concessionários seguiram parâmetros definidos pelo poder concedente.

O reequilíbrio dos contratos é indispensável para o próprio Estado respeitar as condições que, à época, por ações de governo, modificaram a lógica das concessões, o papel do particular e, por consequência, a forma de avaliação das matrizes de risco dos empreendimentos licitados.

Seja por equiparação à força maior, seja por fato do príncipe, seja simplesmente por reconhecimento de um erro de modelagem, análogo a um fato da administração, a repactuação das outorgas é assunto jurídico, metajurídico e, também, um sinal da releitura do papel do Estado na economia e na sociedade deste país. O futuro da infraestrutura poderá ser comprometido se os contratos em vigor não forem reequilibrados.


Kleber Luiz Zanchim é sócio de SABZ Advogados, professor do Insper Direito e professor da FIA

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